terça-feira, 25 de agosto de 2015

DISTINÇÕES FELINAS





Sobre gatos e preconceitos


(texto de Kau Mascarenhas, desenho do autor: "Fantasia Botânica com Tetê de Cinco Cabeças")





Sempre me perguntam o porquê de preferir gatos em vez de cães quando se trata de bicho de estimação. Na verdade amo animais e me dou muito bem com todos eles. Se pudesse teria um mini-zoo. 
Mas os felinos parecem se adequar mais ao meu jeito, à vida que levo, sendo independentes e menos carentes de atenção. Há cuidados que os cachorros requerem e que eu não teria como oferecer morando em apartamento pequeno, sem tempo, tendo que viajar com frequência etc. 
Sei que há pessoas com essas mesmíssimas condições e que mantêm seus totós numa boa. Para elas eu tiro o chapéu. Definitivamente, eu não dou conta.
Os gatos, ao contrário, parecem ficar bem quando viajamos por alguns poucos dias. Têm sua caixinha de areia como banheiro, comem sua raçãozinha numa boa, sem stress. E apreciam a própria companhia.
Fora o aspecto prático dessa história, gatos me intrigam.
O quadrinista Jim Davis, pai do Garfield, disse numa entrevista que eles nos exercitam o amor mais genuíno, pois permitem "o dar sem esperar nada em troca". Sim, gatos só aceitam carinho quando querem carinho, em momentos específicos. E não ficam chameguentos apenas porque os queremos assim.
No passado, o filósofo francês Montaigne (1533-1592) pergunta em um dos seus ensaios “quando brinco com minha gata, quem sabe se é ela quem se distrai comigo, ou sou eu que me distraio com ela?”
Com essa pergunta triunfal ele possibilita o deslocamento subjetivo do agente da ação/vivência psíquica de brincar para um “não humano”. 
Naquele momento Montaigne colocou-se em pé de igualdade com sua bichana. Para mim isso significa não-arrogância e respeito.
Alguns dizem que felinos são egocêntricos e voluntariosos. Sempre?
Dizer que todos os bichos de uma espécie são iguais parece-me apenas uma consequência da falta de vivência específica com esses animais.
Na vida toda já convivi com uns 20 gatos. Certa vez, na casa de meus pais, duas gatas pariram quase ao mesmo tempo seis filhotes cada!
Pude perceber que, embora seus comportamentos tenham traços comuns, suas personalidades têm características distintas.
Por seu jeitão misterioso e por todas as lendas a eles associadas os gatos foram mal compreendidos. 
Relatos históricos contam de gatos perseguidos e queimados na fogueira como bruxas na Idade Média.
Já em certas culturas eram tidos como divinos. Era belíssimo, por exemplo, o templo egípcio construído para a deusa Bastet, que é representada com corpo humano e cabeça de gata.
A depender do contexto, portanto, gatos são tidos como egoístas, perversos e metidos ou como nobres, sábios, altivos, livres e independentes.
Não dá pra generalizar. Mesmo.
Tetê, minha gata, tem me ensinado muito sobre inconstância e complexidade. Às vezes parece que tem muitas cabeças diferentes; no mínimo são cinco gatas em uma.
Gosto muito do texto que reproduzo abaixo, da grande psiquiatra Nise da Silveira, gatófila confessa. A história, você verá, contraria a ideia de que gatos são incapazes de empatia. 
Não são raros casos semelhantes, muito belos, e eu mesmo já vivi alguns desses instantes com felinos. 
Quanto maior o conhecimento maior a possibilidade de se criarem distinções. As generalizações e os preconceitos provêm, sobretudo, de pouca experiência, rigidez de pensamento e visão apequenada.
Segue a sensível crônica que está no livro “Gatos: A Emoção de Lidar”, da autora citada:

"Manoel, o mecânico da garagem do Edifício dos Bancários, situado no sub-solo daquela alta construção que se erguia na rua Marquês de Abrantes, estava furioso. Ele era um hábil mecânico, mas desta vez não conseguia consertar o automóvel de um morador, seu antigo freguês.
Ele se comprometera com o proprietário do carro a entregá-lo em perfeito funcionamento às 11 horas da manhã. Mas o motor continuava irredutivelmente emperrado. De um momento para outro chegaria o proprietário do carro, que dele precisaria para ir ao centro da cidade resolver negócios de homem rico.
Manoel sentiu-se fracassado. Encolerizou-se consigo próprio, contra a maldita máquina, contra o mundo todo.
Aconteceu ainda que uma gata, sem habitação e alimentação regular, era amiga de Manoel. Ela aparecia, não se sabe de onde, naquele mesmo horário junto a Manoel para partilhar com ele o almoço que o mecânico trazia de sua casa. Ele a chamava de Mimi.
Manoel não era um mero mecânico. Possuia sensibilidade e gostava de animais, sentimento raro no ser humano. Mas o mecânico estava de muito mau humor, ferido em seus brios.
Por isso foi grosseiro com a gata amiga. Dirigiu-se a ela asperamente: 'Hoje não tem almoço, não. Pode ir embora'.
A gata Mimi afastou-se devagar. Algum tempo depois voltou trazendo na boca um rato que ela caçara pouco antes. Colocou-o tranquilamente aos pés de Manoel: ele não tem nada para comer hoje.
Toda sua fúria tombou diante do gesto de Mimi.
Manoel ficou perplexo esquecendo o automóvel e seu rico proprietário. Que fazer agora? Certamente ele não comeria o rato recém-caçado. Jogá-lo no lixo seria magoar Mimi. Então tomou uma folha de jornal e embrulhou delicadamente o rato morto. 
Disse a Mimi: 'Vou guardá-lo por enquanto no vão da escada que conduz ao 1o. andar, onde troco minha roupa de rua pelo macacão de trabalho. Hoje almoçaremos mais tarde quando eu terminar minha tarefa’."
Ao ler imaginei Mimi ronronando tranquila e sorrindo depois de ouvir isso.

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Kau Mascarenhas é palestrante empresarial na área de Desenvolvimento Humano, Liderança, Comunicação e Relações Interpessoais. É colunista convidado do Jornal da Manhã, TV Bahia, para tratar de assuntos relacionados a comportamento humano. Tem formações em PNL e Coaching. É escritor e ilustrador. Sócio-diretor do Instituto Pro-Ser. Autor do livro "Mudando para Melhor" e do curso digital PNL-Plus.

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