sexta-feira, 10 de setembro de 2010

31- A DOR DO OUTRO TAMBÉM NOS ENSINA: Uma experiência relacionada à inclusão de portadores de necessidades especiais

O fato não é tão importante quanto o significado do fato.
Essa é uma pérola filosófica que tem implicações em todas as áreas da vida, sobretudo para quem lida com limitações sérias e se vê portador de necessidades especiais.
As dores de alguém justificariam uma escolha de permanecer no papel de vítima? Seus dissabores são determinantes para que comece a assumir uma atitude de alheamento em relação ao mundo?


E qual seria o papel mais construtivo diante do surgimento da doença ou de um trauma que leve alguém a se ver numa cadeira de rodas? Como lidar com a nova realidade? Obviamente, será muito importante notar-se acolhimento e compreensão por parte de quem está ao redor buscando cooperar. A sociedade terá grande participação na forma como alguém se encontra emocionalmente ao se perceber nessa nova situação.
“Mas quem é a sociedade? É valioso estabelecer uma forma mais inclusiva que abrace alguém com dificuldades de movimento ou qualquer outra limitação. Isso é fato. Entretanto, se o próprio ser humano que vive a dificuldade não estiver aberto a sentir-se pertencente à sociedade, parte integrante dela, ele será também responsável pela sua exclusão.”
Quem nos ofereceu essa importante consideração foi o sociólogo paulista Celso Passos Júnior que realizou um ciclo de palestras na Faculdade Social da Bahia no mês de junho, e também dirigiu um workshop aos fisioterapeutas do Espaço Vida.
Tive a felicidade de participar do evento que, destinado a poucas pessoas, teve a estrutura de um bate-papo informal do sociólogo com dois clientes da clínica. Meu amigo Beto, em tratamento fisioterapêutico na clínica, era um deles. Eu e os demais convidados acompanhávamos o encontro de forma silenciosa, aprendendo muito com a metodologia de Celso que, em alguns momentos, se assemelhava às de um profissional de programação neurolinguística.

Mesmo que não tenha sido intencional, o estado de reflexão causado pelas suas perguntas e colocações gerava abertura a novos paradigmas, mexia com emoções e, portanto, tinha conseqüências terapêuticas.
Em termos de PNL – Programação Neurolinguística, minha principal abordagem profissional, podemos dizer que Celso construiu estruturas lingüísticas eficazes para abertura de mapas de realidade, ajudando seus interlocutores a ter horizontes mais amplos. Para isso, recorreu à metamodelagem, ou seja, utilização de perguntas estratégicas com objetivo de fazer a comunicação ser mais clara, ao tempo em que ajudava a flexibilizar posturas mentais. Portanto, evita-se o “por que” nas perguntas, pois essa forma de inquirir é invasiva e acaba produzindo pouca substância nas respostas. Gera mais justificativas vazias do que consistência.
No workshop, Beto, com seqüelas importantes decorrentes de um tiro no pescoço há seis anos, e Tita, portadora de esclerose múltipla, demonstravam através de seus relatos, já ter conseguido fazer progressos em sua estrada de superação da dificuldade.
Contudo, houve momentos em que disseram sentir-se alvo de preconceito, mais velado que explícito, em situações que os incomodaram e entristeceram.
Algumas perguntas de Celso, bem formuladas sob a ótica da PNL, foram anotadas por mim e quero compartilhar as respostas que ocasionou.

Costumamos dizer que o perguntador tem responsabilidade pela resposta que irá obter:

- Vocês já tiveram alguma experiência concreta com preconceito? Como ela aconteceu de fato?
A resposta de ambos foi praticamente a mesma. Nunca houve uma experiência direta, algum episódio específico em que alguém demonstrou atitude discriminatória. Entretanto, houve momentos em que olhares e expressões faciais foram compreendidos como sendo reveladores de preconceito, bem como o afastamento de pessoas amigas. Pudemos entender, portanto, que em muitos casos é o portador da necessidade especial que se sente discriminadado mesmo que não tenha ocorrido uma ação concreta de alguém para com ele.

- Como você se vê na sociedade?
Dida se disse irritada e impaciente com suas limitações. Beto concordou dizendo que sua maior dificuldade é lidar com a dependência. Necessitar de pessoas e sentir que não se é mais “dono de si mesmo” acaba gerando tristeza, depressão e conseqüente vontade de permanecer em isolamento. A impressão é a de que se está incomodando as outras pessoas.

- Nunca houve momentos em que vocês se sentiram mais livres dessas sensações negativas?
A resposta de Beto foi afirmativa. Quando está na presença de alguns amigos verdadeiros – poucos – e nas atividades com a equipe da clínica, há sensações positivas de inclusão. Destacou os momentos prazerosos em que foi ao shopping na cadeira de rodas para assistir a alguns filmes no cinema, em companhia dos fisioterapeutas. Contudo, uma condição importante era que o horário da sessão fosse aquele que atrai menor público. Ainda não se sente bem na presença de muitas pessoas.

- Como podemos tratar o problema, ou seja, a dificuldade de socialização, se não praticarmos, se não houver abertura para mudança de atitude? Se não sairmos do nosso canto, como podemos colocar as pessoas em contato com essa realidade?
Aos poucos, disse Beto, as coisas começam a se arrumar na mente. Quando existe a sensação de acolhimento e de amizade verdadeira é possível encontrar mais forças para fazer movimentos na direção do social. Apontou também uma vontade recorrente de “dormir e não acordar mais”, para não ter que lidar com as dificuldades que tem consigo mesmo e com o meio externo. Gostaria de perceber uma atenção maior dos poderes públicos relacionada com a acessibilidade e com os meios de transporte.

Beto e Tita se mostraram muito sinceros todo o tempo. Procuraram responder as questões com bastante honestidade expondo exatamente o que vêm sentindo desde que se tornaram portadores de necessidades especiais.
Por acompanhar minha própria mãe que igualmente vive uma situação parecida, desde que ficou com seqüelas importantes a partir de um AVC, noto que o papel de quem está ao redor do cadeirante é de suma importância. Entretanto, se ele próprio não assumir um papel de membro ativo da sociedade, se ele não se coloca como parte de um todo, o processo de inclusão dificilmente se estabelecerá.
Tenho me colocado no lugar dele a todo instante. Visitar com constância o meu amigo Beto tem sido uma experiência muito rica, e por acompanhar seu processo, noto o quanto mudou no que diz respeito a sua forma de enxergar a vida. É óbvio que sua posição crítica mordaz, e sua ironia afiada, características marcantes de sua personalidade, se mostram as mesmas quando fala sobre sua inserção na sociedade. Não houve descaracterização de sua identidade. Mas posso observar que até mesmo esses pontos ultimamente surgem na sua comunicação lado-a-lado com bom humor, em tiradas espirituosas, nas quais ele brinca com sua condição de portador de necessidades especiais. Dizem que amadurecemos quando começamos a rir de nossas próprias mazelas. Beto tem me dado muitas demonstrações de bravura embora não perceba.


Há alguns meses ele me convidou para uma sessão de cinema em sua casa para assistirmos juntos ao filme “O Escafandro e a Borboleta” em DVD. Disse que não teria condições de vê-lo sozinho por se tratar de uma história muito forte, real, de um homem muito bem sucedido e rico, com uma linda família, que se vê de uma hora pra outra na condição de portador da locked-in síndrome. Um acidente vascular cerebral o colocou na situação dificílima de não poder movimentar absolutamente nada em seu corpo com exceção de um dos olhos. Literalmente está trancado em si mesmo já que seu sistema nervoso não foi comprometido ao ponto de perder memória e cognição, ou seja, ele pensa e sente, raciocina e deseja, exatamente como antes. Mas não pode se mexer.
Em dados instantes do filme fomos às lágrimas. Era tocante ver Jean Dominique Bauby com sua capacidade intelectual, seu vigor, seu carisma, seu amor pelos filhos e pela esposa, e muitas outras faces da sua vida mental e emocional, tudo isso encerrado num corpo que não mais lhe obedecia.
Inevitável comparar com o quadro de Beto que, entretanto, se mostra muito mais afortunado, já que consegue falar, movimentar o braço direito, e já iniciou a caminhar alguns metros por vez com a ajuda de uma estrutura metálica que lhe dá suporte nas pernas e no tronco.
Jean, no filme, procura interagir com o mundo externo se comunicando através de um processo lento: ouvindo alguém que lhe fala as letras do alfabeto ele pisca o olho quando a pessoa verbaliza aquelas que ele deseja. Essa pessoa vai observando e anotando, até que as letras se transformam em palavras, e essas em frases.
Assim o livro foi escrito. Posteriormente, transformou-se em filme.


E dessa forma foi feita, à sua maneira, uma interação com o social, nos legando lições valiosas de perseverança, humildade, força de vontade e humanidade.





Compomos na sociedade uma bela colcha de retalhos, cada qual com suas peculiaridades. Longe de sermos perfeitos, cada um de nós tem seqüelas e mutilações. Quando não estão no corpo, podem estar na alma. Portanto, somos muito iguais e irmãos, como seres que vivemos dores. Cada qual da sua forma... do seu jeito...
Ter contato freqüente com meu amigo Beto, e com minha mãe (vide texto 28 aqui no blog intitulado “Um Fenômeno Chamado Minha Mãe”) é um privilégio. Eles me ajudam a compreender que diferenças não são defeitos, que pluralidade e diversidade são ricos aspectos da condição humana, e que nenhuma situação precisa representar impedimento para o exercício do nosso papel de parte integrante da sociedade.
Minha gratidão sincera a eles.

Agradeço também a Celso Passos Jr. que me fez ver, num workshop de duas horas, que a sociologia pode ser uma estrada a mais na busca de inclusão dos portadores de necessidades especiais, preparando-os para que a inclusão aconteça em suas mentes, e em paralelo naqueles que os rodeiam.
Minha gratidão igualmente a Nildo Ribeiro, diretor do Espaço Vida, que lidera uma equipe de profissionais muito bem preparados técnica e emocionalmente para dar aos seus pacientes o impulso de que necessitam na busca de maior autonomia e dignidade. É notável a maneira humana com que trabalham, entendendo o ser humano de forma integral corpo-mente-emoção. Esse é um grande diferencial que gera resultados impressionantes. Sinto-me feliz por ver minha mãe iniciar um trabalho com eles, e já percebo sua motivação crescendo, bem como algumas novas conquistas, como dar alguns passos sem precisar apoiar-se nos móveis ou nas paredes.

Registro aqui também a minha gratidão a Deus por me dar a chance de ver que tudo o que nos acontece pode ser usado para nosso bem.
Fecho esse texto com Nietzsche: “Aquilo que não nos mata, nos fortalece” ao tempo em que lembro que, de verdade, o fato não é tão importante quanto o significado que damos a ele.
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Conheça mais:
Sobre PNL - Programação Neurolinguística e o trabalho de Kau Mascarenhas: Você é nosso convidado para a palestra aberta do dia 16/09/2010. Informe-se no site www.kaumascarenhas.com.br

Espaço Vida: A clínica trabalha na perspectiva transdiciplinar, dentro do conceito de trabalhar as pontecialidades enfocando na funcionalidade e na integração global do indivíduo. Pretendemos melhorar a qualidade de vida das pessoas, através de um trabalho individualizado e pautado na humanização e no serviço ao próximo.
Rua das Hortências, n. 448, Pituba, Salvador – Bahia, tel. (71) 3353-7698

Nildo Ribeiro: Fisioterapeuta, coordenador do curso de Fisioterapia da Faculdade Social da Bahia, especialista em neurologia pela UFBa e em metodologia do ensino pela UCSal. Mestre em Distúrbios do Desenvolvimento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutorando em Neurologia/ Neurociências pela UNIFESP.Coordenador de graduação e da pós-graduação em saúde da Faculdade Social.

Celso Passos Jr: Sociólogo, professor de graduação e pós-graduação nas disciplinas de Ética, Bioética, Deotonlogia, Humanização em Saúde, Processo de Inclusão para Deficientes, e Relacionamento Interdisciplinar.




foto: Jardim do Espaço Vida - Borboleta na flor do hibiscus



foto: Jardim do Espaço Vida - anjo

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