Mãos Salvadoras
(texto e ilustração de Kau Mascarenhas,
em homenagem a todos os que partiram para uma vida nova, na tragédia de Santa
Maria)
Muitos tinham tão perto o ser amado e não puderam dar-lhe as
mãos, a salvação.
O
tumulto promoveu o sumiço; em segundos alguém que estava ali ao lado desapareceu.
Empurrões vieram de dentro da própria mente - impulso instintivo para a
recompensa cobiçada: um pouco de ar. A própria vida em risco impelia à busca de uma saída.
Mas os empurrões sentidos por fora foram mais
imperativos: a maré de centenas de desesperados que apenas queriam o direito de
continuar a viver.
Muitas mãos, braços, corpos em transe, sem cabeça, manada não
pensante a empurrar para algum lugar talvez seguro, quem sabe a porta de uma
noite feliz que havia sido deixada lá fora.
Onde estaria agora a luz? Onde estaria o ar? Onde estaria
Deus?
Onde estaria a linda boca que beijara na pista de dança? E o
carinho? E as palavras cheias de sorriso e esperança? Onde estaria a música alegre
que enchera tudo de festa poucos minutos antes?
Aqueles olhos dariam tudo para ver de novo o sinal de
coração feito de longe, com os dedos, pelo seu amor quando foi buscar uma
bebida no balcão.
“- Quem me acorda e me livra desse pesadelo?” – implorou em
meio ao pandemônio.
Grades, paredes, pessoas. Obstáculos. Vencer tudo isso e
achar quem precisava achar – era esse o propósito máximo; poder de novo achar seu amor e sentir
seu abraço lá fora para poder dizer: “conseguimos”.
Mas a massa empurrava, vigorosa. Tal qual um pequeno barco de papel levado por uma enxurrada, seu corpo simplesmente seguia o fluxo.
Caiu próximo à porta, muito perto mesmo.
Ir ao chão naquelas circunstâncias significava algo muito perigoso, mortal.
Mas por sorte não havia apenas braços empurrando.
Mãos salvadoras também existiam ali. E foi muito importante percebê-las, heroicas
e firmes, puxando as suas para a rua, para a vida, e apresentando-lhe de novo a
noite lá de fora que sempre fora feliz. Noite que por pouco não se tornou
inatingível, e que naquele momento se convertera num prêmio.
O próprio ar já era um prêmio.
O atordoamento que lhe impediu de agradecer às mãos salvadoras, anônimas, pelo socorro, não tirou da sua mente a pergunta: “E onde
está o meu amor?”
O corpo doía e a cabeça, também.
O corpo doía e a cabeça, também.
E tão logo levantou-se do asfalto que havia sido seu leito
por segundos, confiante em sua recuperação, ergueu-se para continuar na trilha
do seu objetivo.
Uma dor nova se instalou. O medo de perder um ser tão
querido, de não fazer algo para salvar sua vida. E essa dor tinha garras poderosas,
capazes de sufocar a alma.
“- Saí de lá, estou bem. Mas... e o meu amor?”
Rodrigos, Brunas, Robertos, Marias, Thiagos, Anas, Diegos,
Carolinas, Alexandres... tantos ainda estavam lá dentro bailando com a morte.
“- Cadê meu amor, ou meu irmão, ou minha prima, ou meu
colega, ou minha melhor amiga, ou meu esposo, ou minha namorada?” - também diziam, desencontradas, muitas outras bocas.
A pergunta empurrou no sentido menos desejado. Fez-lhe voltar o
pescoço para o portal do terror de onde havia saído, e viu brotarem rolos dançantes de fumo e faces
de cera.
Então a vontade de retornar e
reencontrar seu amor desligou sua razão.
À porta, junto a muitos que salvavam e muitos que desmaiavam, gritou chamando quem amava. Voz inaudível abafada
pela tosse inevitável.
Olhos e coração insistiam em continuar ardendo, confusos, iludidos,
querendo fazer voltar o tempo, fazer o destino se mover para trás.
E assim pensou que seria capaz de se arremessar, atravessando a sombra negra, quente e perversa.
E assim pensou que seria capaz de se arremessar, atravessando a sombra negra, quente e perversa.
“- Será rápido. Vou encontrar meu amor e sairemos juntos.”
Entretanto, nesse retorno pareceu-lhe que o monstro estava
maior e mais voraz. O demônio disforme havia crescido e lambia tudo e todos,
fechando o caminho. Ao tempo em que engolia corpos, também invadia devorava
almas.
Sentir seu gosto não era fácil, nem bom. Na língua era o
seu sabor que começava a dominar. No peito igualmente se instalara e começara a tornar-se o senhor.
Gotas incandescentes a pingar do teto choviam como cordões
luminosos; pingos dourados e feiticeiros, a queimar seus cabelos, sua pele,
suas energias.
Mas tudo isso seria fácil vencer. A coragem se renovou;
cresceu pela força do afeto e pela fé de que o final seria feliz.
Havia retornado ao inferno, e retiraria de lá o seu amor a qualquer custo.
Havia retornado ao inferno, e retiraria de lá o seu amor a qualquer custo.
Subitamente, uma queda aconteceu. Por que precisaria cair outra vez, justo ali e naquele momento?
Essa não deveria ser a forma de fechar a história, nem seria
um resultado justo para tanta bravura. Reerguer-se se mostrou impossível e,
mesmo imóvel, sentiu tudo girar.
E muitos caiam juntos, por cima, ofertando um abraço carcereiro, sem sentido, inoportuno e mortal.
“- Onde estão as mãos salvadoras de novo? Puxem-me, confio
em vocês! Por que demoram dessa vez?”
De súbito sumiu o calor e veio a lembrança da mãe feliz
beijando seu rosto e fazendo recomendações antes de sair de casa naquela noite.
Desapareceu também o monstro a apertar-lhe o peito por
dentro, e veio uma série de imagens em lampejos, como o sonho da formatura, a cerimônia a ser
realizada, o emprego garantido, o casamento próximo.
Sumiram as mágoas, a ansiedade, a dor, a macabra e caótica
orquestra de gritos, o fogo, o peso dos corpos daqueles que sucumbiam sobre o seu.
Uma improvável leveza se instalou e uma paz sem tamanho
começou a tomar conta de tudo. E veio, finalmente, a visão do socorro.
“- Ah, chegaram de novo as mãos que salvam. Graças a Deus! Tirem-me
daqui, por favor.”
Sim eram mãos salvadoras, novas, dessa vez com sorrisos.
Pertenciam a seres vestidos de branco, que pareciam feitos de puro amor.
Médicos gentis, enfermeiros e atendentes com fantásticos aparelhos que nunca vira antes, estavam ali a amparar a todos os que precisavam. Uma
melodia doce ganhava o lugar, substituindo a fumaça, a balbúrdia e o medo.
Palavras amorosas lhe chegaram aos ouvidos e mãos macias enxugaram suas
lágrimas.
“- E onde está meu amor? Também salvou-se?”
E ouviu como resposta:
“- Digo-lhe com a mais absoluta certeza, ninguém no universo
estará desamparado. Pode confiar. Que tal relaxar e adormecer um pouco?”
E antes que seus olhos se fechassem para o sono reparador
que antecede o alvorecer de uma nova fase na eternidade da vida, teve a imagem
que buscava: o rosto do ser tão querido. Uma lágrima tranquila, aliviada, então
rolou pela sua face.
Também ao lado de anjos cheios de bondade ali estava, numa maca bem próxima, o seu amor sorrindo, que lhe fazia com os dedos o sinal de um
coração.
Um comentário:
Kaus, de centenas de textos, repostagens, fotos que fi, li, recebi nestes dias de infotnuio, este seu é o único que me dou o direito de repassar.
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